Publicado no Instituto Humanitas Unisinos (01/03/2011)
Fala-se muito do fracasso do multiculturalismo. Uma afirmação que muitos pronunciam com complacência, sem, porém, indicar qual perspectiva o substitui ou deveria substituí-lo. É verdade ou é um estratagema para alimentar temores e intolerâncias a serem instrumentalizadas politicamente?
A análise é da antropóloga italiana Anna Casella Paltrinieri, professora da Università Cattolica del Sacro Cuore, em artigo para a revista Popoli, 14-02-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Angela Merkel começou há algum tempo, agora David Cameron, da Inglaterra, lhe faz eco. No meio, houve as revoltas das banlieau parisienses, os "repatriamentos" dos membros da comunidade rom romenos, as fogueiras nos campos nômades. Muitos começam a difundir a ideia: o multiculturalismo fracassou, as sociedades não podem suportar muitas diversidades culturais, a convivência pacífica entre povos e grupos pertence aos contos fabulescos, mas não responde à prova dos fatos. Verdadeiro? Falso? A questão não é acadêmica e não é de pouca importância. Convém pensar acima disso.
Não há a necessidade de ser estudioso de ciências sociais para observar nas nossas cidades, até nas menores, a presença de pessoas que vêm de todas as partes do mundo. As estações, as ruas dos centros históricos, as periferias estão há muito tempo "coloridas". Os nossos filhos têm colegas de escola chineses, africanos, latino-americanos. As cuidadoras dos nossos pais continuam sendo, em grande parte, ucranianas, romenas, russas, as empregadas filipinas, os operários nos canteiros de obras, africanos. O multiculturalismo, portanto, é um "fato", não uma teoria ou uma opção, uma questão de gostos. E, nas nossas sociedades, o multiculturalismo é um "fato" a dezenas de anos.
Então, o que fracassou? Talvez, como diz (a meu ver, justamente) o sociólogo Franco Ferrarotti, não fracassou o multiculturalismo, mas sim as políticas e as teorias sobre o multiculturalismo. Fracassaram aquelas teorias da convivência multiétnica que se revelaram incapazes de compreender e governar as sociedade multicultural. Fracassaram as políticas colocadas em ação pelos Estados para governar (ou mais frequentemente para exorcizar) a presença de pessoas com outras tradições e outros valores.
A visão britânica da sociedade multicultural continua, porém, no esquema do Commonwealth e, assim, pressupõe um pensamento que não coloque em discussão a supremacia política e cultural do mundo inglês, diante do qual as outras culturas só podem ser subalternas e "funcionais". A visão francesa assimilacionista se rege sobre a necessidade de tornar totalmente privada e individual a pertença cultural. Privadamente, você pode ser árabe, curdo, ganense. Em público, você é um cidadão, anônimo e incolor. Um laicismo abstrato (do qual a França é mestra até naquilo que concerne à pertença religiosa), absolutamente incapaz de compreender o estado de ânimo e a cultura do povo das banlieau. E a visão alemã, tão radicada no binômio "sangue e solo", pensa em uma inviolabilidade do seu próprio território sobre o qual os "outros" só podem ser hóspedes.
Essas teorias mascaram todas as ideias arcaicas de uma hierarquia das culturas, da qual descendem, como estamos bem vendo, práticas políticas e jurídicas que sustentam a legitimidade de uma hierarquia dos direitos e do acesso aos recursos. Assim, muitas políticas sobre o multiculturalismo (por exemplo na Itália) são pensadas em função da defesa do perigo representado pelos outros.
O medo (Thomas Hobbes ensina) torna-se o critério da vida associada, e o Estado, o protetor da nossa tranquilidade. Na realidade, se olharmos para a história, quando se verificou o conflito entre povos, entre comunidades, não era só por causa da diversidade cultural. Nesse caso, ocorreu porque, sobre essa diversidade, construíram-se projetos políticos que avantajavam alguns e puniam outros, porque as diferenças se radicalizaram e se tornaram intoleráveis, porque se construíram esquemas de pensamento sobre os "outros" e se pretendeu que fossem definitivos, porque se deixou que visões anti-igualitárias, frequentemente racistas, circulassem livremente na opinião pública.
A diversidade cultural é, parece-me, uma das variáveis da diversidade humana (junto com a diversidade de gêneros, de religiões, de capacidades pessoais, de idade...). Assim como as outras, deve ser tratada dentro de um esquema que tenha bem sólidos os princípios da dignidade da pessoa, da justiça, da liberdade e da igualdade. É um desafio democrático, não o fim da democracia.
A análise é da antropóloga italiana Anna Casella Paltrinieri, professora da Università Cattolica del Sacro Cuore, em artigo para a revista Popoli, 14-02-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Angela Merkel começou há algum tempo, agora David Cameron, da Inglaterra, lhe faz eco. No meio, houve as revoltas das banlieau parisienses, os "repatriamentos" dos membros da comunidade rom romenos, as fogueiras nos campos nômades. Muitos começam a difundir a ideia: o multiculturalismo fracassou, as sociedades não podem suportar muitas diversidades culturais, a convivência pacífica entre povos e grupos pertence aos contos fabulescos, mas não responde à prova dos fatos. Verdadeiro? Falso? A questão não é acadêmica e não é de pouca importância. Convém pensar acima disso.
Não há a necessidade de ser estudioso de ciências sociais para observar nas nossas cidades, até nas menores, a presença de pessoas que vêm de todas as partes do mundo. As estações, as ruas dos centros históricos, as periferias estão há muito tempo "coloridas". Os nossos filhos têm colegas de escola chineses, africanos, latino-americanos. As cuidadoras dos nossos pais continuam sendo, em grande parte, ucranianas, romenas, russas, as empregadas filipinas, os operários nos canteiros de obras, africanos. O multiculturalismo, portanto, é um "fato", não uma teoria ou uma opção, uma questão de gostos. E, nas nossas sociedades, o multiculturalismo é um "fato" a dezenas de anos.
Então, o que fracassou? Talvez, como diz (a meu ver, justamente) o sociólogo Franco Ferrarotti, não fracassou o multiculturalismo, mas sim as políticas e as teorias sobre o multiculturalismo. Fracassaram aquelas teorias da convivência multiétnica que se revelaram incapazes de compreender e governar as sociedade multicultural. Fracassaram as políticas colocadas em ação pelos Estados para governar (ou mais frequentemente para exorcizar) a presença de pessoas com outras tradições e outros valores.
A visão britânica da sociedade multicultural continua, porém, no esquema do Commonwealth e, assim, pressupõe um pensamento que não coloque em discussão a supremacia política e cultural do mundo inglês, diante do qual as outras culturas só podem ser subalternas e "funcionais". A visão francesa assimilacionista se rege sobre a necessidade de tornar totalmente privada e individual a pertença cultural. Privadamente, você pode ser árabe, curdo, ganense. Em público, você é um cidadão, anônimo e incolor. Um laicismo abstrato (do qual a França é mestra até naquilo que concerne à pertença religiosa), absolutamente incapaz de compreender o estado de ânimo e a cultura do povo das banlieau. E a visão alemã, tão radicada no binômio "sangue e solo", pensa em uma inviolabilidade do seu próprio território sobre o qual os "outros" só podem ser hóspedes.
Essas teorias mascaram todas as ideias arcaicas de uma hierarquia das culturas, da qual descendem, como estamos bem vendo, práticas políticas e jurídicas que sustentam a legitimidade de uma hierarquia dos direitos e do acesso aos recursos. Assim, muitas políticas sobre o multiculturalismo (por exemplo na Itália) são pensadas em função da defesa do perigo representado pelos outros.
O medo (Thomas Hobbes ensina) torna-se o critério da vida associada, e o Estado, o protetor da nossa tranquilidade. Na realidade, se olharmos para a história, quando se verificou o conflito entre povos, entre comunidades, não era só por causa da diversidade cultural. Nesse caso, ocorreu porque, sobre essa diversidade, construíram-se projetos políticos que avantajavam alguns e puniam outros, porque as diferenças se radicalizaram e se tornaram intoleráveis, porque se construíram esquemas de pensamento sobre os "outros" e se pretendeu que fossem definitivos, porque se deixou que visões anti-igualitárias, frequentemente racistas, circulassem livremente na opinião pública.
A diversidade cultural é, parece-me, uma das variáveis da diversidade humana (junto com a diversidade de gêneros, de religiões, de capacidades pessoais, de idade...). Assim como as outras, deve ser tratada dentro de um esquema que tenha bem sólidos os princípios da dignidade da pessoa, da justiça, da liberdade e da igualdade. É um desafio democrático, não o fim da democracia.
Para saber mais um pouco acesse:
- O multiculturalismo falhou, diz Merkel http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=37399 ;
- Todos somos multiculturais (Entrevista com Tzvetan Todorov) http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=38921 ;
- O cardeal Gianfranco Ravasi e o multiculturalismo: melhora a interculturalidade http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=40687 .
Então, qual a sua opinião? Somos realmente seres multiculturais como afirma Todorov? A multiculturalidade (e possivelmente essa discussão chegará aqui no Brasil e dará muito "pano pra manga") chegou ao fim? Quais os pontos que você destaca (após a leitura dos textos) para a ocorrência destas discussões? A interculturalidade seria a melhor opção como defende o cardeal Ravasi? Participem!
Abração
Barroca
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